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"Todo ser humano é um estranho
ímpar".
"Doce fantasma, por que me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.Então, convicto,
ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som.
Aperto... o quê? a massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente o nada.
Amado ser destruído, por que voltas
e és tão real assim tão ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.
Terei um dia conhecido
teu vero corpo como hoje o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma idéia platônica no espaço?O desejo perdura em ti que já não és,
querido ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo aceso e gelo matizados.Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola".(Aparição Amorosa - Carlos Drummond de Andrade)
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Drummond, que traduz anseios de um jeito tão quase como se me lendo. Ah e eu quero, eu quero não entender e nem esperar. E queria não ter medo do mundo.*****"A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estela,a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela,
o círculo vazio, onde se estenda,
e que o mundo converte numa cela.A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciênciae nem contra si mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,se destroem no sonho da existência".
(A Ingaia Ciência - Carlos Drummond de Andrade)